A Parábola do Bom Samaritano: Exegese e Interpretação da Caridade Cristã

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A Parábola do Bom Samaritano (Lc 10,25-37) representa uma das passagens mais conhecidas e influentes dos Evangelhos, constituindo um dos textos fundamentais para a compreensão da moral cristã e da natureza da verdadeira caridade. Esta narrativa lucana não apenas responde à questão sobre o amor ao próximo, mas revoluciona completamente a compreensão judaica tradicional sobre quem deve ser considerado nosso semelhante.

Do ponto de vista exegético, esta parábola apresenta riquezas literárias, teológicas e pastorais que merecem análise cuidadosa. O contexto histórico-cultural, a estrutura narrativa, os personagens simbólicos e a mensagem teológica convergem para formar um ensinamento de profundidade inesgotável sobre a essência do cristianismo.

A tradição patrística e o Magistério da Igreja encontraram nesta parábola uma fonte perene de reflexão sobre a caridade cristã, a justiça social e a universalidade da salvação. Desde os Padres da Igreja até os documentos contemporâneos, este texto lucano tem iluminado a compreensão católica sobre o amor efetivo ao próximo e suas implicações práticas.

Contexto Histórico e Literário

O Evangelho de Lucas e sua Teologia Social

São Lucas, o evangelista da misericórdia, apresenta uma sensibilidade particular para as questões sociais e a universalidade da mensagem cristã. Médico de profissão e companheiro de São Paulo, ele escreve para uma comunidade predominantemente gentílica, preocupando-se em demonstrar que o Evangelho transcende as barreiras étnicas e religiosas.

A Parábola do Bom Samaritano insere-se perfeitamente nesta perspectiva lucana. Ao escolher um samaritano como protagonista positivo da narrativa, Lucas subverte as expectativas de seus leitores e demonstra que a verdadeira religiosidade se manifesta através da caridade concreta, independentemente da origem étnica ou da ortodoxia ritual.

O terceiro Evangelho, escrito provavelmente entre 80-85 d.C., destina-se a Teófilo (Lc 1,3), representante da cultura greco-romana culta. Lucas adapta sua linguagem e suas categorias teológicas para tornar inteligível aos gentios a radicalidade da mensagem cristã sobre o amor fraterno.

O Contexto Imediato da Parábola

A parábola é narrada em resposta à pergunta de um doutor da Lei sobre as condições para a vida eterna (Lc 10,25). Esta pergunta, formulada “para tentar” Jesus, revela a tensão entre a interpretação farisaica tradicional da Lei e a nova hermenêutica proposta pelo Mestre de Nazaré.

O diálogo que precede a parábola estabelece claramente os termos da questão: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu entendimento; e amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Lc 10,27). A citação combina Deuteronômio 6,5 e Levítico 19,18, síntese já conhecida na tradição judaica.

Contudo, a pergunta subsequente revela o núcleo do problema: “E quem é o meu próximo?” (Lc 10,29). Esta questão não era meramente acadêmica, mas refletia debates teológicos concretos sobre os limites da obrigação moral e os critérios de inclusão na comunidade da aliança.

A Estrada de Jerusalém a Jericó

A escolha do cenário geográfico não é casual. A estrada que liga Jerusalém a Jericó era notoriamente perigosa, conhecida como “caminho sangrento” devido aos frequentes assaltos. Esta via descendia cerca de 1000 metros em aproximadamente 27 quilômetros, atravessando região desértica e rochosa que oferecia esconderijos ideais para salteadores.

O contraste simbólico é evidente: de Jerusalém, cidade santa e centro religioso, para Jericó, cidade profana e comercial. O homem ferido encontra-se literalmente no caminho entre o sagrado e o profano, entre a religiosidade oficial e a vida cotidiana, metáfora da condição humana em busca de salvação.

A tradição patrística, especialmente Orígenes e Santo Agostinho, interpretou alegoricamente este caminho como símbolo da condição decaída da humanidade, ferida pelo pecado e necessitada de socorro divino.

Análise Literária e Estrutural

A Estrutura Narrativa da Parábola

A parábola propriamente dita (Lc 10,30-35) apresenta estrutura narrativa cuidadosamente construída, seguindo o padrão clássico das parábolas lucanas: situação inicial, desenvolvimento através de três personagens contrastantes, clímax na ação do samaritano, e conclusão com perspectiva futura.

Situação inicial (v.30): Apresentação do homem ferido, vítima da violência e necessitado de ajuda.

Primeiro contraste (v.31): O sacerdote que “passou de largo”, evitando o envolvimento.

Segundo contraste (v.32): O levita que, após observar, também “passou de largo”.

Clímax (vv.33-35): O samaritano que se aproxima, se compadece e age eficazmente.

Aplicação (vv.36-37): Jesus inverte a pergunta original e ordena a imitação do comportamento samaritano.

Os Personagens e seu Significado Teológico

O Homem Ferido: Símbolo da Humanidade Necessitada

O primeiro personagem é apresentado de forma deliberadamente vaga: “um homem” (ἄνθρωπός τις). Esta indefinição universaliza o personagem, tornando-o representativo de toda humanidade ferida pelo pecado e necessitada de salvação.

A tradição patrística viu neste homem ferido uma figura de Adão e de toda a humanidade decaída. São João Crisóstomo comenta: “Este homem representa cada um de nós, feridos pelos salteadores que são os demônios”. Esta interpretação alegórica, embora não esgote o sentido literal, enriquece a compreensão teológica da narrativa.

A condição do ferido – “meio morto” (ἡμιθανής) – sugere estado limítrofe entre vida e morte, metáfora perfeita da condição espiritual da humanidade pecadora: ainda capaz de salvação, mas incapaz de salvar-se por si mesma.

O Sacerdote e o Levita: A Religiosidade Formal

A presença de um sacerdote e de um levita na narrativa não é casual. Estes personagens representam a hierarquia religiosa judaica e, simbolicamente, toda forma de religiosidade que se limita ao cumprimento formal dos preceitos sem traduzir-se em caridade efetiva.

O texto especifica que ambos “passaram de largo” (ἀντιπαρῆλθεν), sugerindo movimento deliberado para evitar o encontro. Esta atitude pode refletir preocupações de pureza ritual – o contato com sangue ou com um morto causaria impureza legal – mas Jesus apresenta esta justificação como inadequada diante da necessidade humana concreta.

São Tomás de Aquino observa que “a misericórdia deve prevalecer sobre a observância ritual quando há conflito entre ambas”. A parábola estabelece claramente a hierarquia dos valores cristãos: a caridade supera qualquer consideração meramente cerimonial.

O Samaritano: Modelo de Caridade Autêntica

A escolha de um samaritano como protagonista positivo constitui o elemento mais revolucionário da parábola. Os samaritanos eram considerados hereges pelos judeus ortodoxos, descendentes dos colonos assírios estabelecidos no antigo reino do Norte após 722 a.C. e praticantes de um judaísmo sincrético centrado no monte Garizim.

O antagonismo judeu-samaritano era intenso no tempo de Jesus, como atesta o próprio Evangelho de João: “os judeus não se dão com os samaritanos” (Jo 4,9). Ao apresentar um samaritano como modelo de virtude, Jesus quebra radicalmente os preconceitos étnicos e religiosos de seus ouvintes.

A ação do samaritano caracteriza-se por:

Compaixão visceral: O verbo σπλαγχνίζομαι indica emoção profunda que mobiliza toda a pessoa.

Aproximação: Contrariamente aos outros, ele “aproximou-se” (προσελθών), vencendo a barreira da separação.

Cuidado integral: Cuida das feridas, transporta o ferido, providencia hospedagem e garante cuidados futuros.

Generosidade: Paga as despesas e se compromete com custos adicionais.

A Técnica Parabólica de Jesus

Jesus demonstra maestria pedagógica ao construir esta parábola. Ele não responde diretamente à pergunta “quem é meu próximo?”, mas transforma a questão em “como devo comportar-me como próximo?”. Esta inversão desloca o foco da identificação do objeto da caridade para a responsabilidade do sujeito caritativo.

A técnica da inversão de expectativas é característica das parábolas jesuânicas. Os ouvintes esperariam que, após sacerdote e levita, aparecesse um israelita leigo, completando a tríade hierárquica judaica. Em vez disso, surge o samaritano “herético”, subvertendo completamente as categorias religiosas tradicionais.

A pergunta final de Jesus (v.36) força o doutor da Lei a reconhecer a superioridade moral do samaritano, não obstante seus preconceitos teológicos. O fato de ele não conseguir nem pronunciar a palavra “samaritano”, referindo-se apenas a “aquele que usou de misericórdia”, revela a dificuldade de superar os condicionamentos culturais e religiosos.

Interpretação Patrística

Os Padres Apostólicos e Apologistas

A interpretação patrística da Parábola do Bom Samaritano desenvolveu-se em múltiplas direções, combinando exegese literal com rica tradição alegórica. Os Padres apostólicos, embora não tenham deixado comentários extensos sobre esta parábola específica, estabeleceram os princípios hermenêuticos que orientariam a interpretação posterior.

São Clemente de Roma, na Primeira Carta aos Coríntios, desenvolve temas da caridade e hospitalidade que ecoam a mensagem da parábola, embora sem citação explícita. A preocupação com a φιλανθρωπία (filantropia) cristã permeia seus escritos, preparando o terreno para a compreensão patrística posterior.

A Escola Alexandrina: Orígenes

Orígenes († 254) oferece a mais influente interpretação alegórica da parábola na tradição patrística. Em suas Homilias sobre São Lucas, ele desenvolve uma leitura cristocêntrica que marcará profundamente a exegese posterior.

Segundo Orígenes:

  • O homem ferido representa Adão e toda a humanidade decaída
  • Os salteadores simbolizam o demônio e os poderes do mal
  • O sacerdote e o levita representam a Lei e os Profetas, insuficientes para a salvação
  • O samaritano prefigura Cristo, o verdadeiro Salvador
  • A hospedaria simboliza a Igreja, lugar de cura e crescimento espiritual
  • O hospedeiro representa os ministros da Igreja
  • As duas moedas significam os dois Testamentos ou os dois preceitos do amor

Esta interpretação alegórica, embora não esgote o sentido literal, oferece riqueza teológica considerável e influenciou profundamente a tradição exegética posterior.

São João Crisóstomo: Exegese Moral

São João Crisóstomo († 407), o grande pregador de Antioquia, privilegia a interpretação moral e prática da parábola. Em suas homilias, ele enfatiza as implicações concretas do ensinamento jesuânico para a vida cristã cotidiana.

Crisóstomo destaca particularmente:

A universalidade da caridade: “O samaritano não perguntou de onde vinha o ferido, nem qual era sua religião, mas viu um homem necessitado e o socorreu”.

A crítica à religiosidade formal: “De que serve a ortodoxia se não produz obras de misericórdia? Melhor é o herético caritativo que o ortodoxo insensível”.

A dimensão social da fé: “Não basta crer corretamente; é necessário traduzir a fé em ação caritativa concreta”.

Santo Agostinho: Síntese Teológica

Santo Agostinho († 430) oferece síntese magistral entre interpretação literal e alegórica da parábola. No Quaestiones Evangeliorum, ele desenvolve leitura que combina fidelidade ao texto com profundidade teológica.

Agostinho interpreta a parábola simultaneamente como:

Ensinamento moral concreto: Sobre a obrigação de socorrer os necessitados, independentemente de sua origem.

Alegoria cristológica: Cristo como verdadeiro Bom Samaritano que socorre a humanidade ferida.

Eclesiologia sacramental: A Igreja como hospedaria onde os feridos pelo pecado encontram cura e restauração.

Esta síntese agostiniana influenciou decisivamente a exegese medieval e permanece referência fundamental para a interpretação católica contemporânea.

Interpretação Medieval

A Exegese Monástica

Os autores monásticos medievais desenvolveram particularmente a dimensão espiritual da parábola, aplicando-a ao crescimento na vida interior e à prática das virtudes monásticas.

São Beda, o Venerável († 735) combina tradição patrística com sensibilidade pastoral própria, interpretando a parábola como modelo de lectio divina: leitura, meditação, oração e contemplação correspondem aos cuidados progressivos dispensados ao ferido.

São Bernardo de Claraval († 1153) aplica a parábola à teologia mística, vendo no samaritano modelo do amor desinteressado que caracteriza os graus superiores da caridade. Em seus sermões, ele desenvolve a progressão: amor de si por causa de si, amor de Deus por causa de si, amor de Deus por causa de Deus, amor de si por causa de Deus.

A Exegese Escolástica

São Tomás de Aquino († 1274) oferece análise sistematicamente teológica da parábola na Catena Aurea e nas questões sobre a caridade na Summa Theologiae. Sua abordagem caracteriza-se pela precisão conceitual e pela integração harmoniosa entre fé e razão.

Tomás desenvolve particularmente:

A definição da caridade: A ação do samaritano exemplifica perfeitamente a caridade como “amor benevolentiae”, amor que busca o bem do outro por si mesmo.

Os graus da caridade: A progressão dos cuidados dispensados pelo samaritano ilustra os diferentes graus de perfeição na prática da virtude.

A relação entre fé e obras: A parábola demonstra que a ortodoxia doutrinária deve necessariamente traduzir-se em ortopráxis caritativa.

São Boaventura († 1274) privilegia a dimensão franciscana da parábola, vendo no samaritano modelo de pobreza evangélica e proximidade aos sofredores. Sua interpretação enfatiza a conformitas Christi como ideal da vida cristã perfeita.

Interpretação Contemporânea

O Magistério Social da Igreja

A doutrina social católica encontra na Parábola do Bom Samaritano uma das bases bíblicas fundamentais para seu ensinamento sobre justiça social e caridade organizada.

Leão XIII, na encíclica Rerum Novarum (1891), cita implicitamente a parábola ao defender a responsabilidade social dos cristãos diante da “questão operária”. A imagem do homem ferido encontra paralelo na condição dos trabalhadores explorados pelo capitalismo selvagem.

Pio XI, na Quadragesimo Anno (1931), desenvolve o conceito de “caridade social” inspirando-se na ação do samaritano. A caridade individual deve ampliar-se em estruturas sociais justas que previnam a marginalização e a exclusão.

São João Paulo II: Antropologia e Ética

São João Paulo II oferece interpretação particularmente rica da parábola, integrando-a em sua antropologia filosófica e em sua ética social.

Na encíclica Dives et Lazarus (1986), o Papa polonês apresenta a parábola como chave hermenêutica para a compreensão cristã da pobreza e da riqueza. O homem ferido representa os pobres da terra, enquanto o samaritano simboliza a responsabilidade dos ricos para com os necessitados.

Na Evangelium Vitae (1995), João Paulo II aplica a parábola à defesa da vida humana, vendo no homem ferido símbolo de toda vida ameaçada que necessita proteção e cuidado.

Papa Francisco: Misericórdia e Periferias

Papa Francisco renovau a interpretação da parábola no contexto de sua teologia da misericórdia e de sua opção pelas periferias existenciais.

Na exortação Evangelii Gaudium (2013), Francisco vê na atitude do samaritano o modelo do “pastor com odor de ovelha”, que se aproxima concretamente dos sofredores sem medo de sujar-se as mãos.

Na encíclica Fratelli Tutti (2020), a parábola torna-se paradigma da fraternidade universal. Francisco interpreta o texto lucano como fundamento bíblico para a superação de nacionalismos excludentes e a construção de uma “casa comum” planetária.

Dimensões Teológicas Fundamentais

Cristologia: Cristo como Bom Samaritano

A interpretação cristológica da parábola, desenvolvida desde Orígenes, permanece central na teologia católica contemporânea. Cristo é o verdadeiro Bom Samaritano que se inclina sobre a humanidade ferida pelo pecado para oferecer cura e salvação.

Esta leitura não contradiz o sentido literal, mas o aprofunda teologicamente. Assim como o samaritano se fez próximo do necessitado, Cristo “se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14), assumindo nossa condição para nos elevar à dignidade filial.

Os cuidados do samaritano prefiguram os cuidados de Cristo:

  • O óleo e o vinho antecipam os sacramentos da cura (Unção dos Enfermos) e da alegria (Eucaristia)
  • O transporte na montaria simboliza Cristo que carrega nossos pecados e fraquezas
  • A hospedaria representa a Igreja, lugar de cura e crescimento espiritual
  • A promessa de retorno antecipa a Parousia, quando Cristo voltará para consumar a obra da redenção

Eclesiologia: A Igreja como Hospedaria

A dimensão eclesiológica da parábola revela a Igreja como continuadora da missão caritativa de Cristo. Assim como a hospedaria acolhe o ferido e proporciona cuidados especializados, a Igreja oferece os meios de salvação e santificação para a humanidade necessitada.

O hospedeiro representa os ministros da Igreja – bispos, sacerdotes, diáconos – mas também todos os cristãos chamados a exercer a caridade fraterna. A responsabilidade pastoral não se limita à hierarquia, mas estende-se a toda a comunidade eclesial.

As “duas moedas” podem simbolizar os dois grandes mandamentos (amor a Deus e amor ao próximo), os dois Testamentos (Antigo e Novo), ou os dois sacramentos fundamentais (Batismo e Eucaristia) que sustentam a vida cristã.

Antropologia: Dignidade e Solidariedade

A parábola oferece fundamentos sólidos para uma antropologia cristã baseada na dignidade universal da pessoa humana e na solidariedade como estrutura fundamental da existência.

Dignidade universal: O homem ferido não é identificado por sua origem, profissão, ou status social. Sua dignidade deriva simplesmente do fato de ser humano e necessitado. Esta universalidade fundamenta a doutrina católica sobre os direitos humanos fundamentais.

Solidariedade responsável: A atitude do samaritano demonstra que a solidariedade autêntica não se limita ao sentimento de compaixão, mas traduz-se em ação concreta, eficaz e duradoura. A “civilização do amor” proclamada pelo Magistério contemporâneo encontra aqui um de seus fundamentos bíblicos.

Reciprocidade assimétrica: O samaritano não espera retribuição do beneficiado, estabelecendo modelo de doação gratuita que caracteriza o amor cristão. Esta gratuidade reflete o amor divino e constitui antecipação das relações escatológicas do Reino.

Escatologia: Antecipação do Reino

A parábola contém dimensão escatológica importante, apresentando a caridade como antecipação das relações definitivas do Reino de Deus. A superação das barreiras étnicas e religiosas prefigura a comunhão universal dos salvos.

O “vai e faze tu o mesmo” (Lc 10,37) não é apenas imperativo moral, mas convite a participar na construção do Reino através da prática da caridade. Cada ato de amor fraterno contribui para a transformação do mundo segundo o plano divino.

A promessa de retorno do samaritano pode ser interpretada escatologicamente como antecipação da Parousia, quando Cristo voltará para completar definitivamente a obra da redenção e estabelecer plenamente seu Reino de justiça e paz.

Aplicações Morais e Pastorais

Princípios de Moral Social

A Parábola do Bom Samaritano oferece princípios fundamentais para a moral social católica:

Universalidade da responsabilidade: Todo ser humano é responsável pelo bem-estar de seus semelhantes, independentemente de vínculos familiares, étnicos ou religiosos.

Prioridade da pessoa sobre as instituições: Quando há conflito entre normas institucionais e necessidades humanas concretas, estas devem prevalecer.

Caridade eficaz: A autêntica caridade cristã não se contenta com bons sentimentos, mas traduz-se em ação concreta e eficiente.

Gratuidade e perseverança: A caridade cristã é desinteressada e duradoura, não busca retribuição e mantém-se no tempo.

Orientações para a Pastoral Social

A parábola oferece orientações preciosas para a pastoral social da Igreja:

Aproximação aos marginalizados: Como o samaritano, os agentes de pastoral devem aproximar-se concretamente dos sofredores, superando preconceitos e barreiras sociais.

Cuidado integral: A ação caritativa deve considerar todas as dimensões da pessoa humana – física, psicológica, espiritual, social.

Organização institucional: A caridade individual deve complementar-se com estruturas organizadas (como a hospedaria) que garantam cuidado especializado e duradouro.

Formação para a caridade: É necessário formar agentes capazes de exercer caridade competente, combinando amor e profissionalismo.

Desafios Contemporâneos

A parábola ilumina desafios contemporâneos específicos:

Globalização e exclusão: Em mundo globalizado, os “feridos” da estrada incluem refugiados, migrantes, vítimas de guerras e injustiças estruturais.

Tecnologia e proximidade: A comunicação digital pode facilitar a caridade, mas não substitui a proximidade pessoal e o cuidado direto.

Pluralismo religioso: Como o samaritano, cristãos devem colaborar com pessoas de outras tradições religiosas na promoção da dignidade humana.

Ecologia integral: A parábola inspira cuidado não apenas com pessoas feridas, mas com toda a criação ameaçada pela crise ecológica.

Conclusão

A Parábola do Bom Samaritano permanece, após dois milênios, como um dos textos mais relevantes e desafiadores do Novo Testamento. Sua riqueza exegética, demonstrada através da análise histórico-crítica, da interpretação patrística e medieval, e da hermenêutica contemporânea, revela profundidades inesgotáveis de significado teológico e moral.

A genialidade pedagógica de Jesus manifesta-se na construção desta narrativa que, através de personagens simples e situação cotidiana, transmite verdades fundamentais sobre a natureza de Deus, a dignidade humana e as exigências da vida cristã. A inversão de expectativas – o “herético” samaritano como modelo de virtude – continua desafiando os preconceitos contemporâneos e convocando para uma caridade verdadeiramente universal.

A tradição interpretativa católica, desde os Padres da Igreja até o Magistério atual, demonstra a fecundidade perene desta parábola para a compreensão da identidade cristã e da missão da Igreja no mundo. A síntese entre interpretação literal e alegórica, entre dimensão individual e social, entre exigência moral e promessa escatológica, revela a riqueza multidimensional do texto lucano.

Para os cristãos contemporâneos, a parábola oferece critério seguro para o discernimento moral e inspiração constante para a prática da caridade. Em tempo de crescente individualismo e fragmentação social, o exemplo do samaritano convoca para redescobrir a solidariedade como estrutura fundamental da existência humana e como antecipação do Reino definitivo.

A pergunta de Jesus – “Qual destes três te parece ter sido o próximo do homem que caiu nas mãos dos salteadores?” – permanece atual e desafiadora. Cada cristão, cada comunidade, cada época deve respondê-la não apenas teoricamente, mas através da prática concreta da caridade que transforma o mundo segundo o coração de Deus.

Como ensina o Catecismo da Igreja Católica: “A parábola do Bom Samaritano permanece como norma da caridade universal” (CIC 1932). Que esta norma continue inspirando e orientando todos aqueles que, seguindo Cristo, desejam fazer-se próximos de quantos encontram feridos na estrada da vida.

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