A Igreja Católica e os Governos Totalitários

Picture of Pe. Sirlei Oliveira

Desde os primórdios do Cristianismo, a Igreja de Cristo se viu em um embate constante com poderes que almejavam um controle absoluto sobre a vida humana. A perseguição romana, as investidas do iluminismo e, de forma mais acentuada no século XX, a ascensão dos governos totalitários e a Igreja Católica representam alguns dos capítulos mais dramáticos dessa história. O totalitarismo, em sua essência, busca substituir Deus e a verdade revelada por uma ideologia sustentada por narrativas e “atualizações históricas” e um líder onipotentes, negando a dignidade intrínseca da pessoa humana e seus direitos inalienáveis, como a liberdade de consciência e de culto.

Este artigo se propõe a mergulhar nas profundezas do relacionamento conflituoso entre a Igreja Católica e os governos totalitários, explorando como a Doutrina Social da Igreja se ergue como um baluarte contra o absolutismo estatal. Analisaremos as respostas dadas pelo Magistério, a resistência silenciosa e heroica de mártires e fiéis, e a relevância perene desse tema para os dias atuais. Mais do que uma simples retrospectiva histórica, este texto é um chamado à reflexão sobre a vocação da Igreja de ser a luz do mundo e o sal da terra, defendendo a liberdade e a dignidade de cada indivíduo, criados à imagem e semelhança de Deus.

O Contexto Histórico e a Doutrina Católica

A história da Igreja é marcada por um diálogo, nem sempre pacífico, com as autoridades temporais. Contudo, os governos totalitários do século XX — como o comunismo, o nazismo e o fascismo — apresentaram um desafio sem precedentes. Diferentemente de outros regimes, o totalitarismo não se contentava em governar; ele aspirava a redefinir a realidade, a moralidade e a própria natureza humana, colocando o Estado como a única fonte de verdade e sentido. O indivíduo era visto não como uma pessoa, mas como uma engrenagem de um sistema maior, sem valor intrínseco.

O Catecismo da Igreja Católica nos ensina que o fundamento de todo poder político é a dignidade da pessoa humana (cf. CIC 1929). A autoridade civil deve se pautar pela lei moral, pelo bem comum e pela defesa dos direitos humanos fundamentais (cf. CIC 1903). Os regimes totalitários invertem essa ordem, colocando a ideologia do Estado acima da lei de Deus e da dignidade da pessoa. Nesse cenário, o confronto era inevitável. A Igreja Católica, como guardiã da verdade revelada e da dignidade humana, não poderia se calar. Ela precisava, e ainda precisa, resistir a qualquer sistema que negue a Deus e escravize a consciência.

A Profunda Oposição do Evangelho ao Totalitarismo

A oposição da Igreja aos governos totalitários e à Igreja Católica não é meramente política, mas teológica e antropológica. A fé cristã nos ensina que o homem foi criado livre, com um destino eterno que transcende o tempo e o espaço. Jesus Cristo, em sua vida e morte, manifestou a suprema liberdade em face do poder opressor. A frase “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mt 22,21) estabelece uma clara distinção entre as esferas do poder temporal e espiritual. O totalitarismo, ao buscar ser o “César e Deus” ao mesmo tempo, se coloca em direta oposição à mensagem evangélica.

O Papa Pio XI, na encíclica Mit brennender Sorge (1937), condenou veementemente o nazismo, alertando para o perigo de um Estado que usurpa o lugar de Deus. Ele escreveu: “Aquele que eleva a raça, ou o povo, ou o Estado… a uma falsa divinização idolátrica, desvirtuando e pervertendo a ordem do mundo criada e ordenada por Deus, está longe da verdadeira fé em Deus.” Da mesma forma, o Papa Pio XII, diante do avanço do totalitarismo ateu, defendeu a liberdade da Igreja e os direitos humanos em suas mensagens de rádio e encíclicas, como a Summi Pontificatus.

O comunismo ateu, por sua vez, foi condenado de forma clara pelo Magistério, sobretudo na encíclica Divini Redemptoris (1937) de Pio XI, que o descreveu como intrinsecamente perverso por sua negação de Deus e pela supressão da família e da propriedade privada. A perseguição aos cristãos em países comunistas — com prisões, torturas e execuções — atesta a incompatibilidade radical entre o Evangelho e essa ideologia.

 Resistência e a Fundamentação no Magistério

A resistência da Igreja aos governos totalitários e à Igreja Católica não se baseia em uma estratégia humana, mas em sua fidelidade ao mandato de Cristo.

Em 1981 , o Papa São João Paulo II  escreveu a carta encíclica Centesimus Annus, em comemoração aos cem anos da encíclica Rerum Novarum (Das Coisas Novas), do Papa Leão XIII. Nela ele reitera a necessidade de um Estado que sirva a pessoa humana, e não o contrário. A encíclica enfatiza a importância de um “Estado de direito”, onde o poder seja limitado e a sociedade civil tenha autonomia para florescer.

São João Paulo II, que viveu sob o jugo do totalitarismo nazista e comunista na Polônia, foi uma voz profética. Ele denunciou a “civilização da morte” e a “cultura do relativismo” que dão brechas para o surgimento de novas formas de totalitarismo. Em sua visão, a única garantia contra a tirania é o reconhecimento da dignidade inalienável de cada pessoa, que é filha de Deus e tem uma vocação transcendente.

Se você desejar aprofundar e conhecer um pouco da história da luta do Papa São João Paulo II, assista “O Papa que Venceu o Comunismo”, da Produtora Brasil Paralelo. O filme retrata desde a época do nascimento de Karol, marcada pela Batalha de Varsóvia, onde a Polônia venceu o exército vermelho da União Soviética até a queda do muro de Berlim, em 1989, passando pelo atendado que sofreu no dia 13 de Maio de 1981.

A Igreja, portanto, não é apenas uma espectadora. Ela é um agente moral que, por sua própria natureza, deve se opor a tudo o que escraviza o homem e o afasta de Deus. São Paulo VI, no documento conciliar Gaudium et Spes, já havia sublinhado a importância de a Igreja atuar em favor da liberdade e da paz no mundo, o que inevitavelmente a coloca em confronto com qualquer ideologia que negue esses valores.

São João Paulo II na Irlanda em 1979 (CNS photo/courtesy Torchia Communications)

Aplicação Prática na Vida Cristã Hoje

A história da Igreja Católica e os governos totalitários não é apenas um registro do passado; é um chamado à ação para o presente. Vivemos em um mundo onde, embora as formas tradicionais de totalitarismo possam ter diminuído, o “totalitarismo invisível” do consumismo, do relativismo moral e do coletivismo sem Deus continua a ameaçar a dignidade humana.

O fiel católico é chamado a ser um cidadão vigilante e um evangelizador corajoso. Isso significa:

  • Vigilância Intelectual: Estudar a Doutrina Social da Igreja para reconhecer e refutar ideologias que prometem o paraíso na terra, mas levam à escravidão.
  • Fidelidade Moral: Permanecer firme nos princípios da fé, mesmo quando a cultura dominante os rejeita. A liberdade de consciência é o último bastião da dignidade humana.
  • Ação Caritativa: Promover a justiça e a caridade, construindo comunidades que valorizam a pessoa humana e o bem comum, contrariando a lógica egoísta e desumana dos sistemas totalitários.
  • Testemunho Pessoal: Viver uma vida autêntica de fé, sendo luz onde há trevas. A simples coragem de viver o Evangelho em sua plenitude já é um ato de resistência contra qualquer poder que queira nos silenciar.

São João Paulo II nos recorda: “Não tenhais medo! Abri as portas a Cristo!” É a liberdade que Ele nos oferece, a única que pode nos libertar verdadeiramente de todo o jugo.

O Chamado à Coragem e à Esperança

A luta contra os governos totalitários e a Igreja Católica é, em última análise, a luta pela alma do homem. A Igreja, como Mãe e Mestra, nos oferece os meios para vencer esse combate. A história de santos e mártires, como Edith Stein, São Maximiliano Kolbe e o Cardeal Stepinac, nos mostra que a fé é a única força capaz de resistir ao mal absoluto. Eles deram suas vidas por Cristo, testemunhando que a verdadeira autoridade reside em Deus, e não em qualquer poder terreno.

A esperança cristã não é uma utopia, mas uma certeza enraizada na ressurreição de Cristo. Por mais que os poderes do mal pareçam prevalecer, sabemos que a vitória final pertence a Cristo. A Igreja continuará a ser “sinal e salvaguarda do caráter transcendente da pessoa humana” (CIC 2210), enfrentando todo e qualquer sistema que tente usurpar o lugar de Deus.

Que possamos, com a graça de Deus, ser fiéis a esse chamado, defendendo a dignidade de cada vida, a liberdade de cada consciência e a verdade que nos foi revelada por Cristo, nosso Senhor.

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